Pruitt-Igoe e o fim da modernidade?

Reproduzo abaixo um excelente texto sobre Pruitt-Igoe, conjunto habitacional de baixa renda dos EUA famoso por ter sido implodido em menos de 20 anos de existência e eleito pelos pós-modernos o símbolo do fim da arquitetura moderna. Recomendo o texto retirado do Blog Arquitetônico e o trailler do documentário sobre o bairro. Boa leitura!

Artigo:

Pruitt-Igoe: O mito em torno de um conjunto habitacional

Fonte: Arquitetônico

Em 1972, a demolição do conjunto habitacional Pruitt-Igoe foi considerada por muitos como o momento exato da morte da arquitetura moderna. O infame conjunto estadunidense, que se tornou um dos lugares mais marginalizados e violentos da cidade em que foi implantado, ficou fortemente estigmatizado, e sua demolição coincidiu com um momento em que se contestavam fortemente os valores do modernismo, sendo essa a principal razão para a eleição do momento de sua demolição como o último suspiro do movimento.

A cidade de St. Louis, no Estado do Missouri, Estados Unidos, sofria uma crise causada pelo crescimento descontrolado por que havia passado nos últimos anos. A migração de outras cidades e Estados e a falta de políticas públicas fizeram com que em St. Louis crescessem periferias imensamente pobres e marginalizadas nos arredores do município, e seu crescimento ameaçava atingir o centro da cidade, fazendo despencar o valor do solo. Em 1948 a prefeitura, juntamente ao governo do Estado do Missouri, decidiu tomar atitudes para combater esse processo. Em 1950 foi aprovado o projeto da prefeitura, com verba do Estado: a demolição das favelas que se aproximavam da área central da cidade e sua venda para a iniciativa privada a baixos preços, de modo a assegurar a ocupação pelas atividades comerciais e pela classe média; e a construção de novos conjuntos habitacionais densos e verticais, de modo a acomodar a imensa população pobre da cidade em pouco espaço. Essa idéia se contrapunha à proposta inicial, que era a de prédios de dois ou três pavimentos acompanhados por um grande parque público, e foi idealizada pelo prefeito Joseph Darst, eleito em 1949.

Uma série de conjuntos foram erigidos na cidade a partir do início dos anos 1950. O primeiro, Cochran Gardens, foi muitíssimo elogiado pela crítica especializada, e chegou a ser premiado, de modo que o Pruitt-Igoe foi pensado como um Cochran Gardens em escala aumentada. O projeto do arquiteto Minoru Yamasaki (que depois seria responsável pelo World Trade Center) se apoiava em muitos valores modernistas. Ao propor 33 edifícios com 11 andares cada, Yamasaki propunha a liberação do solo para atividades públicas e convivência, com muita arborização e equipamentos de lazer entremeando os blocos residenciais. No total, o conjunto apresentava 2870 apartamentos em 23 hectares, uma densidade populacional bem maior do que aquela que havia nas periferias, teoricamente com uma qualidade de vida bem superior àquela vista anteriormente. Embora o arquiteto declaradamente preferisse a concepção inicial de prédios baixos, ele buscou criar espaços de estar e convivência nos corredores dos prédios para compensar a verticalidade.

Mas nem tudo ocorreu como planejado. O isolamento do local com relação ao centro da cidade, a falta de manutenção e cuidado, a falta de assistência e até mesmo alguns erros de projeto levaram o Pruitt-Igoe, então aparentemente um conjunto promissor, a um processo de acelerado declínio. Os equipamentos de lazer não foram instalados conforme o prometido, os estacionamentos eram insuficientes, as áreas de lazer não possuíam atrativos, além da falta de preocupação com o conforto ambiental – preocupação pouco observada na arquitetura de então – que fez com que muitos dos apartamentos fossem mal ventilados, e portanto insalubres. Os corredores mal iluminados e os elevadores que só paravam de três em três andares tornaram-se locais de freqüentes assaltos, já que aos pobres não lhes foi oferecido mais que a moradia, característica freqüente das políticas habitacionais americanas.

Outro fator que faz o Pruitt-Igoe ser freqüente alvo de críticas é a segregação racial. A cidade de St. Louis recebia imigrantes pobres do norte e do sul dos Estados Unidos, devido a sua posição central no país; e assim, formavam-se periferias imensamente segregadas, reservadas a brancos ou a negros, como se observa ainda hoje naquele país, a propósito. A idéia, implícita até no nome do conjunto (Wendell Pruitt foi um piloto de avião negro, e William Igoe um político branco), era que os Pruitt-Igoe abrigasse tanto brancos como negros, ainda que se propusesse que cada prédio fosse ocupado unicamente por uma etnia, para supostamente evitar tensões raciais, mas conforme os negros ocupavam os apartamentos, os brancos não queriam se mudar para o Pruitt-Igoe, que acabou se tornando mais um bairro quase exclusivamente negro em uma grande cidade estadunidense. A segregação racial, como já foi dito, é um problema histórico dos Estados Unidos, e sua presença não deixou de se manifestar no Pruitt-Igoe.

Ainda nos anos 50, a degradação que tomou conta do Pruitt-Igoe fez com que sua taxa de ocupação fosse baixíssima, circulando em torno dos 60%. Muitos pobres preferiam morar em periferias sem planejamento a viver em um conjunto habitacional com bons princípios habitacionais mas que se tornou um bairro perigoso e muito estigmatizado. Entre aqueles que insistiram em ficar no conjunto mesmo durante seu processo de esvaziamento, havia uma ativa associação de moradores que buscava lutar pela melhora das condições de vida do local, mas em vão.

Em 1968, a prefeitura de St. Louis começou a encorajar o processo de evacuação para posterior demolição do Pruitt-Igoe. Os prédios foram implodidos em dias diferentes, até que em 1972 o primeiro edifício foi posto abaixo. Nesse momento, segundo o crítico Charles Jencks, célebre entusiasta e teórico do Pós-modernismo, “a arquitetura moderna morreu”. A idéia de Jencks ganhou força numa década de 70 em que se contestavam fortemente os valores do modernismo e do International Style, e criou-se um forte mito em torno do fracasso do Pruitt-Igoe. Passou-se a associar seu fracasso unicamente a sua arquitetura, a despeito de eventuais fatores externos como a ausência de outras políticas públicas para garantir empregos aos moradores do conjunto e as mudanças com relação à concepção original. Assume-se, erroneamente, que o Pruitt-Igoe fosse um símbolo, um ícone do modernismo, e usa-se esse argumento para culpar o modernismo por seu fracasso, quando na verdade o conjunto nunca ganhou nenhum prêmio de arquitetura. Deve-se levar também em consideração que muitos dos aspectos do projeto foram decididos não pelos projetistas, e sim pelas necessidades impostas pela crise da cidade (daí a alta densidade populacional) e pelo baixo orçamento de que o Fundo de Habitação Social dispunha. Ainda assim, a falácia da “insensibilidade e racionalismo extremo dos modernistas” levou à criação de um mito em torno do Pruitt-Igoe.

O mito, que associa quase unicamente sua arquitetura à sua falha (e a estende a todo o modernismo), acaba por minimizar problemas sociais muito complexos que permeiam a história e a sociedade americana, como tensões raciais e periferização, e atribui ao arquiteto toda a responsabilidade pela falha da política habitacional estadunidense, que nunca foi notória por seus bons resultados, ao contrário daquela praticada nos países da Europa Ocidental que dispunham do Estado do bem-estar social.

A arquitetura moderna falhou em alguns aspectos, mas parece-me um grande equívoco associá-los ao fracasso do Pruitt-Igoe. O modernismo está, sim, sujeito a críticas trazidas pelas mudanças de concepção por que a história nos faz passar. Pode-se dizer que em nome da arquitetura internacional, da racionalidade, das máquinas de morar, abria-se mão da busca por uma inserção no contexto, num período em que pouco se falava sobre aspectos de conforto ambiental. Hoje entendemos que cada lugar possui infinitas particularidades, e que todos os aspectos têm de ser considerados na busca por uma arquitetura adequada a seu contexto, entre outros itens que podem entrar na discussão. Mas por outro lado, parece-me que a crítica ao modernismo cometeu o erro de apoiar-se muito na oposição absoluta ao movimento anterior, no que acabou por, de um jeito ou de outro, basear-se naquele modelo a que buscava opor-se. O abandono geral dos valores modernos, defendido por algumas escolas e críticos, é, em minha visão, uma grande leviandade, já que muito se poderia aproveitar de uma arquitetura rica em princípios e valores. A liberação do térreo para atividades públicas, a planta livre, os tetos-jardins (que agora aparecem com freqüência em projetos de estudantes de arquitetura, sem a devida menção), conceitos ricos e que poderiam servir muito bem à arquitetura atual. Se os modernistas falharam em alguns momentos, podemos no mínimo extrair deles uma arquitetura que possuía valores e ideais, que parecem escassos na arquitetura contemporânea. Mas isso é uma outra discussão, que não cabe apenas no parágrafo final deste post.

Uma curiosidade: a área em que ficava o Pruitt-Igoe é hoje ocupada por escolas e cursos técnicos, que ficam no Distrito Escolar Público de St. Louis.

Referências:

http://www.economist.com/blogs/prospero/2011/10/american-public-housing (The Economist)
http://www.pruitt-igoe.com/temp/1991-bristol-pruitt-igoemyth.pdf (Katherine G. Bristol, University of California, Berkeley) (Recomendo essa leitura para quem quiser ler mais acerca do tema).
http://www.soc.iastate.edu/sapp/pruittigoe.html (Alexander von Hoffman, Joint Center for Housing Studies, Harvard University)

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